Um escritório de advocacia dos EUA anunciou que abrirá uma sede no metaverso, e que será o primeiro do mundo dentro do universo virtual. Considerado o "próximo capítulo da Internet", o mundo virtual onde as pessoas poderão interagir e desenvolver qualquer atividade — trabalhar, jogar, fazer compras, se divertir — está no centro das atenções desde que Mark Zuckerberg anunciou o desenvolvimento do seu metaverso.
Mais especificamente, o metaverso é um universo virtual onde as pessoas vão interagir entre si por meio de avatares digitais. Esse mundo será criado a partir de diversas tecnologias, como realidade virtual, realidade aumentada, redes sociais, criptomoedas etc.
Como essa realidade virtual parece ser a grande aposta das gigantes da tecnologia para o futuro das relações humanas, inclusive do trabalho, seria de se esperar que o futuro da advocacia também estivesse nesse universo, e o primeiro escritório logo se tornaria apenas mais um. Porém, no Brasil, a criação de escritórios virtuais não deve ser tão simples.
Em 2007, um escritório de São Paulo tentou abrir uma sede na plataforma Second Life (segunda vida, em português), um ambiente virtual que simulava em alguns aspectos a vida real e social do ser humano. Na época, porém, o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP não foi favorável à inciativa.
De acordo com a Ordem paulista, a criação e a manutenção de escritório virtual no ambiente eletrônico é contrária aos princípios do sigilo profissional e não se coaduna com a pessoalidade que deve presidir a relação cliente-advogado. Além disso, a criação de um escritório virtual poderia caracterizar captação de clientes, o que é vedado pelo Código de Ética.
Especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que a situação atual é um pouco diferente, mas o sucesso do metaverso ainda deve ser visto com cautela. E existem muitas perguntas sem respostas: teremos Habeas Corpus para avatares? Os Tribunais e a Polícia também devem existir virtualmente? Sob qual regime jurídico estariam os escritórios?
Para a advogada Patrícia Peck, sócia fundadora do Peck Advogados e Presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP, estamos em um momento novo, e o Direito evolui e se transforma com a mudança da própria sociedade. Assim como hoje os escritórios já estão presentes na internet e nas mídias sociais, será um passo natural também estarem presentes nos novos espaços de convivência e interação social entre indivíduos e instituições.
"Até por que não faria sentido gerar barreiras de acesso à Justiça e do direito a um advogado para qualquer cidadão digital onde quer que ele se encontre. Mas, por certo, teremos desafios a enfrentar, pois o aparente sucesso do metaverso é visto ainda com cautela, já que experiências anteriores não foram bem sucedidas, e não há como deixar de lembrar do Second Life", ressaltou a especialista.
Se a criação de uma realidade paralela no âmbito privado traz oportunidades, também há o risco de cometimento de novos crimes. Segundo a advogada, é motivo de preocupação saber como o Estado vai exercer o poder de polícia nessa nova "realidade".
"Se chegarmos ao ponto de ter escritórios lá [no metaverso], é porque o cidadão está lá também. Logo, o Tribunal e a Polícia deveriam estar lá também? Mas vão ter que pagar para ter uma sede lá? Isso é complicado", pontuou.
A advogada explica que podem surgir barreiras econômicas de entrada, e que só quem tem grandes recursos financeiros vai conseguir estar representado no metaverso, levando à criação de monopólios.
Na sua opinião, não seria bom para o mercado gerar um ambiente de exploração de serviços jurídicos com exclusividade, em que direito de escolha do cliente fica restrito a poucos que podem atuar naquele ambiente. "Todas estas questões precisarão ser enfrentadas. Afinal, a tecnologia precisa estar a serviço da humanidade para sua melhoria e evolução. Assim como a advocacia", concluiu Peck.
Omar Kaminski, especialista em Direito Informático, disse que o que mais preocupa é o excesso de concentração de dados na mão de uma só empresa. "No início da internet comercial no Brasil, discutíamos se o ciberespaço era um ambiente à parte ou não. Se sim, quiçá precisaríamos de uma nova Constituição Federal. O mesmo se pode dizer do metaverso: é um ambiente, ou universo à parte? Se sim, precisaremos de novas regras."
Mas, segundo ele, não se trata de um novo universo, ou ao menos não totalmente. "As limitações éticas, as obrigações de sigilo, confidencialidade, discrição, sobriedade permanecem, bem como as de não mercantilização da profissão", defendeu.
Segundo ele, uma das razões do insucesso do Second Life foi o fato de exigir um hardware robusto. "Ao que parece, o metaverso do Facebook irá depender de óculos (Oculus) de realidade virtual, algo que também será um limitador", prevê.
Ele afirma, ainda, que algumas das limitações éticas também vão se repetir agora, como por exemplo a existência ou não de habeas corpus para avatares, entre outras.
Novos recursos
Rony Vainzof, sócio do escritório Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados, professor de Direito Digital e coordenador da Escola Paulista de Direito, explica que o resgate histórico do desenvolvimento das tecnologias é fundamental para entender o momento em que vivemos.
Na década de 1990, o que existia era a web 1.0 em que os usuários só consumiam a informação gerada por provedores. Depois, na web 2.0, a partir dos anos 2000, o usuário não só consome informação, mas também passa a provê-la. Atualmente, predomina a web 3.0, em que os usuários são proprietários das suas próprias informações e riquezas.
Nesse contexto, ele acredita que a situação já mudou em relação à decisão da OAB sobre o Second Life, em 2007. Naquela ocasião, o maior problema era a questão de sigilo entre cliente e advogado em razão de uma empresa determinada prover o ambiente virtual, o que seria diferente atualmente, pois podem existir diversos metaversos com proprietários distintos.
"Aqui temos que distinguir a questão de ter um escritório institucional num ambiente digital ou prestar serviços advocatícios dentro desse ambiente, o que é muito diferente", pontua.
"Na minha opinião um escritório pode ter uma sede institucional no metaverso sem prestar serviços jurídicos dentro dele, porque o escritório não pode ser impedido de ter uma página institucional em qualquer ambiente digital, desde que seja condizente com o novo provimento sobre publicidade da OAB (Provimento 205/2021), primando pela discrição e não captação de clientela", ressalta.
Matéria publicada na Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2021, 9h47
https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/escritorio-metaverso-ressuscita-debate-realidade-virtual