"Quando não existir descendente, ascendente ou cônjuge, o testador desfruta de plena liberdade, podendo transmitir todo o seu patrimônio a quem desejar"
O testamento é instrumento importante para o planejamento sucessório, por intermédio do qual o autor da herança pode dispor da totalidade de seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
Essa liberdade de testar, porém, nem sempre é plena. Caso o testador tenha ascendente ou descendente sucessível, somente poderá dispor da metade de seus bens. A outra metade pertence aos herdeiros necessários, chamada de legítima, e que não poderá ser incluída no testamento, conforme expressa previsão contida no artigo 1.857, § 1º, do Código Civil.
Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que a parte indisponível do patrimônio, que cabe aos herdeiros necessários, pode constar em testamento, desde que isso não implique privação ou redução da parcela a eles destinada por lei.
A decisão foi proferida em processo emblemático em que o autor da herança elaborou testamento dispondo sobre a totalidade de seu patrimônio, dividindo-o entre seus filhos – herdeiros necessários – e sobrinhos – herdeiros testamentários. Na divisão, os filhos ficaram com ¾ (três quartos) dos bens e os sobrinhos com ¼ (um quarto).
A disposição foi questionada por duas filhas do testador, que pediram judicialmente que o testamento fosse considerado como se só tratasse da divisão da parte disponível, excluindo-se a metade do patrimônio que a lei reserva aos herdeiros necessários.
A relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi, destacou que a análise do caso exige uma interpretação sistemática dos dispositivos legais que tratam da sucessão. De um lado, há a indispensável proteção aos herdeiros necessários por meio da legítima e, de outro, a necessária liberdade de dispor conferida ao autor da herança, cuja vontade deve ser respeitada nos limites legais.
Definiu-se, assim, que a parte indisponível destinada aos herdeiros necessários pode ser referida em testamento pelo autor da herança, desde que, evidentemente, não implique em redução da parcela que a lei destina aqueles herdeiros.
Importante ressaltar que, embora a lei assegure a legítima aos herdeiros, nada impede que o testador deixe sua quota disponível a um ou mais herdeiros necessários, uma vez que pode atribuí-la a quem desejar. Dessa forma, o herdeiro necessário será beneficiado duas vezes: com a sua porção na legítima, concorrendo com os outros herdeiros necessários, bem como com parte ou a totalidade da quota disponível.
Quando não existir descendente, ascendente ou cônjuge, o testador desfruta de plena liberdade, podendo transmitir todo o seu patrimônio a quem desejar.
O testamento também pode ser utilizado para dispor de questões não patrimoniais, tais como, o reconhecimento de um filho, a nomeação de tutores ou curadores para filhos menores de idade ou incapazes, a doação de órgãos do corpo humano etc. Segundo Silvio de Salvo Venosa, o testamento “pode também conter conselhos, exortações, confissões, demonstrações de carinho ou repulsa, sem conteúdo jurídico e sim moral, mas que podem, eventualmente, servir para compreender o real alcance da vontade do testador em suas disposições” [1].
[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. – 7. Ed. – São Paulo: Atlas, 2007. p. 226.